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31/05/2014

Milagre iludido

Milagre, 
pedido e sofrido milagre.
Respeitado e humilde pedido atendido.
Docemente invadido com o senso puro de te amar.
Milagre de justamente ser isso e tão digno de o ser,
que nunca se deu conta de nada igual ou parecido,
remetido ou liberto num Mar feito de mim ou de um único sonho,
de uma miragem no deserto de miragens tidas.
É milagre, 
é pedido por rosário, 
é o tempo deste espaço
que se perde docemente no colo do teu abraço.




I.P.O.

Apresso o fim da memória.
É esta agora a hora de vos deixar partir.
A minha vida tem também de prosseguir.
Não posso ajeitar-me às vossas lembranças,
às dores que vos acompanham.

Conheço-Vos a todos.
São bocados das minhas veias onde eu também 
sangro sangue vivo!
Por mais que este amor que Vos tenho seja semelhante 
ao amor de Pai e Filhos,
nem eu sou vosso Pai nem Vós meus Filhos.
Apresso o fim da história onde eram e sempre serão 
as figuras principais de cena.

Vão, descansem.
Esta dor já se deve escrever só com minúsculas.
No meu Coração Todos têm um lugar destinado.
Nas minhas lembranças ainda vivem como as outras crianças 
Serão sempre parte de mim.

Um adeus adiado.



As manhãs

Já no comboio ele procurou um lugar 
do lado iluminado pelo sol,
ao sentarem-se, 
deu-lhe a ela o lugar da janela ficando ele na coxia.

Os braços então amanharam-se e as mãos ecoaram numa só,
sendo os dedos finos dela e os grossos dele, 
a perfeita combinação díspar.
As estações passavam e tudo era mais leve aos dois.








30/05/2014

Manipura

Um gesto.
Um toque que se tem por ser imperativo,
necessário como é o ato de respirar, 
o tocar...
O olhar a preceito,
de profundidade em piras de fogo desnudado 
sem forma de se apagar. 

As mãos abertas,
Os rostos em encosto serenos com os traços amenos 
de quem nos adormece ao lado e com quem 
se desperta na manhã seguinte com a doçura 
de sempre ter adormecido ao nosso lado.

Em aperto de corpos, 
de braços, de pernas, 
mãos, dedos e almas.
Eis a miragem.
O desejo do voltar, 
do regresso.
Não ouças o que digo.
Olha-me nos olhos.
Ouve-me acima do meu umbigo.
É a expressão só da saudade tua que agora vivo.




Vislumbre

Cão coxo,
Dono manco.
Cão que caminha a mancar,  
Dono que vai andando a coxear...
 

Eu vendo e pensando;  
seria o Dono já coxo e o Cão já manco,
ou o Cão se fez coxo 
e o Dono se fez manco?
 

Assim como que por empatia,  
para não se estranhar!  
Quem sabe qual dos dois decidiu um dia primeiro 
coxear ou mancar?
 

Cão manco,  
Dono coxo;  
Cão que caminha a coxear,  
Dono que vai andando a mancar...  

Eu vendo e pensando, suspeitando até.
O Cão decerto ama o Dono e Dono ama o Cão.
 
Se calhar até já nem precisam de mancar ou coxear.
Assim se ficam nesta ilusão feita para um do outro não desalinhar.
 

Um com o outro.  
Coxeando ou mancando,  
mas lado a lado um com outro,  
indo vão por aí caminhando.
 

Juntos.
Cão e Dono.





29/05/2014

Zé Barnadé, médico e doutor

Zé Barnadé dizia-se médico e doutor,
mas o pobre do raio do homem,
nem das letras do seu nome era amo e senhor.

Ora houve um dia em que uma alma iludida com ele foi ter,
a propósito da mulher grávida que estava
com um tal grande ataque de espirros,
que já nem falava, só espirrava e espirrava!

Ai o Zé Barnadé que se tomava médico e doutor,
viu que o caso não era de brincadeiras.
Vestiu a camisa nova que lhe deram e era boa para o calor e lá foi 
em visita urgente, encurtando o caminho pelas direitas eiras.

Chegado à morada da doente,
que cenário a ele se deparava...
A mulher não só não parava de espirrar em constante, 
como até a chorar, soluçava.
Irra mas que maleita a desta gente!

- "Não há que temer!" - disse o Zé ao marido desgostoso.
- "Trago um remédio dado por um vizir do Vouga que sofria do mesmo a esmo.
Verá que com esta condição o processo ainda é moroso,
mas depois sem mais delongas, os espirros vão-se de vez mesmo!"

Bardané deixou em casa da senhora,
um frasco de rapé para que o marido, ao bater de cada hora
lhe dar a cheirar sem desculpa ou mora.
Em três dias tudo finda e esta moléstia, será uma má memória!

Mas não foi assim. Pior o remédio que a cura!
A Zé Barnadé calhou um excerto de porrada abonada pelo marido da do espirro!
Que emenda tão dura, que o homem não espirrava mas era cá uma cavalgadura!
O Barnadé acabou no hospital como sonhava mas não em doutor.
Como doente ferido e dorido no pico o mês do calor!

Então não é que com a mezinha do ruminante,
os espirros da mulher ficaram ainda mui maiores e como ela soluçava ao alto!
Ainda para desespero da senhora em dor constante,
a criança ela pariu e em vez de chorar não é que o petiz,  
só espirrava e espirrava!...




Até

Até que o Mares decidam secar 
por não serem capazes de beijar a areia sem a molhar,

até que todos os justos deste Mundo sejam desse nome merecedores,

até que "sempre" seja a palavra mais perto do que é eterno,

até que nos teus olhos não possam ter guarida as lágrimas 
que não lhes sejam suas,

eu estou contigo e contigo eu fico sempre.




Estou

Estou contigo.
A teu lado,
não atrás de ti ou mesmo à tua frente.
Na rua de mil gentes,
só no meio do meu peito.
Fico aqui não por não ter para onde ir.
Aqui ao teu lado é onde eu dei com a razão 
para estar.
Ao teu lado,
na podridão e no champagne,
em carne, sangue, luta e amor.
Por isso dorme que eu sem sono, 
vou sob o manto bordado que nos junta,
permanecendo.








28/05/2014

Sem legenda

Pára, sai da sombra!
Foge do frio e não andes a monte!
Solta-me, desabriga-me!
Dá-me a razão de ser teu! 
Encolhe-Te!
Respira-me! 
Abraça-te! 
Mastiga-me!
Não te afirmes nem me apontes!
Não maltrates essa estrada que trazes debaixo dos pés!
Cala o futuro e mo não contes!
Espera o virar solto de todas marés!
Vai por aí, segue esse caminho, 
abraça o meu destino e morada!
Sou como uma estrada que não vai a nenhum lado!
A esquina que não pode ser dobrada,
o fio da navalha, 
o gume da espada!
Sou quem recebe o amanhã!
És quem nunca foste, 
a sombra do ontem
A honra de ser vã!

 





27/05/2014

Como tu

Dei-te um segredo.
Um daqueles que é só para ser traído
num instante de um segundo e esquecido num segundo instante.

Dei-te a forma mais interessante 
de saberes algo de mim 
que mais ninguém sabe ou conhece.
Sei que não o dizes em voz alta e que o guardas com um sorriso blindado, 
de quem tem um tesouro.

Era um segredo de um,
a meias passou a ficar guardado.
Sem medo ou vergonha de o partilhar perguntei-te somente 
se querias saber um segredo meu.
Com resposta afirmativa na ponta da língua e com o sentido 
de oportunidade alerta, 
deste o aval e eu a confiança.

Dei-te um segredo meu
daqueles que apenas se contam a quem se ama com tudo o que se traz,
sejam segredos, calmas, medos, degredos, 
passadas em falso ou a direito sem temer as consequências, 
actos irreflectidos ou de pensamento de horas, 
suspiros e falas mordidas, 
raspas de lágrimas e fagulhas de risos.

Dei-te um segredo meu, 
um que te fez sorrir e corar nas noites e nas manhãs.
Disse-te apenas que nunca amei assim ninguém como tu.







26/05/2014

Ritual

Escrevo-te cartas.
Sentada ou de riste.
No chão do quarto ou em cima dos joelhos.
Escrevo-te cartas 
com todas as palavras e letras que sei.
Escrevo cartas com a mão direita e com a mão esquerda.
Escrevo-te cartas 
que te façam feliz ou triste.
Escrevo-te cartas a meu medo e a meu gosto.
Escrevo-as em sombras repostas ou à luz do astro rei de dia.
Sonho nestas cartas.

Escrevo-te cartas sem ruído numa mesa de café.
Nelas vai o relato dos meus dias e tardias noites.
Exponho por escrito os meus terrores, coragens e gelos.
Escrevo-te cartas sem saber sequer se as lês.
Escrevo-as todas as noites a todas as horas badaladas.

Deixo-tas aqui, 
numa colecção de cartas por abrir junto a uma lápide rosada.
Escrevo-te cartas sonhando que as vês
como se esta espera pela minha adorada e ansiada morte
não fosse a pior das demoras.