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30/04/2014

Um par

Ao olhar de todos:

Diálogos a dois.

Sentados no banco do comboio, 
mãos dadas e de tempo a tempo, 
nas paragens das estações ela o mira;
ele a olha e sem palavra alguma, 
os vejo a falar um com o outro usando o discurso 
do silêncio supremo nascido do amor simples, 
puro e suposto.

 

Como eu os vi:

Diálogos a dois.

As mãos na gaveta de outras mãos, 
mas não esquecidas, 
apenas resguardadas, 
plácidas e acolhidas.
Olhares que suspiram em conversas num duelo doce e aprazado, 
separadas por piscares e estridentes brilhos de emoção.
Dedos que se tacteiam nos pulsos e o colo dos antebraços,
em cadência de discurso de meiguice venerada e surpresa.
Testas que se tomam 
num caminho familiar e sem mapa, 
que aproveitam a oportunidade surgida, 
para adicionarem as faces na conta digna e lisa 
de um carinho mais.



Perda

Um dia a dor fica muda,
surda e cega.
Um dia as palavras escritas hoje
serão tidas como verdade.
Ao chegar esse tempo findo, 
os teus olhos as terão como lei e tábua, 
porque os amantes só necessitam das suas próprias realidades,
não de obscuridades em mentiras ou desenganos rasos.

Para isso só o sonho é que precisa passar para aquele outro além.

Depois recomeçar com a Lua o namoro,
reabrir o livro que se deixou no início de um capítulo,
passar novamente pela cancela, 
dar passos fáceis e sentir a terra a ficar para trás aos nossos pés.





Un espoir

Penso em ti.
Penso e repenso sem sequer ser por linha ou por extenso.
Penso em ti na ilusão,
na incerteza, 
na destreza no tracejar num papel.
Na linha pautada de um viver.

Penso em ti como as abelhas 
que tem o propósito do mel e aí o fel da vida, 
não me é mais sentido.
Repouso em ti o pensamento, 
sei que este é o caminho que me leva de encontro ao Mar meu.

Renasço em ti no instante perseguido 
de um sublime despertar desapegado sem voz de luto.
Respiro em ti.
Faço a prova de que estou vivo no espelho a bafo revelado.

Vivo.
Recuso-me a não pensar em ti.
Não pensar em ti é admitir que sou ninguém, 
fantasma obnóxio.
Eu tenho de ser gente; sei o que sou.
Ao pensar em ti faço-me peça a peça, 
componho-me e remendo-me.
Volto a reconhecer a minha pegada, 
o meu cheiro e o meu toque, 
a minha coutada e endereço e onde está o degrau da escada.

Penso em ti.
Como não?
Dia após dia,
vida até à morte.
Minha alma abraça agora outra face, 
doçura, 
confirmação ou apenas 
fado e sorte.
Não me iludo-me só.

Penso só em ti. 








28/04/2014

Por suplício

Não me custa muito estar sem ti.
É-me quase insuportável isso sim, não te ter comigo.

Como um Céu sem ter o azul que faz dele Céu,
um Mar sem as ondas espumadas em crista
prova de que é Mar filho de Oceanos;
uma casa sem o abrigo do telhado 
em aconchego prestado a vidas em morada lá,
a magnifica rosa sem os espinhos 
que a recordam que é apenas uma rosa,
ou em declínio, 
o meu corpo sem sangue a desejar pulsar.

Não me custa muito estar sem ti.
Custa-me somente estar. 

  







27/04/2014

O começo do finar

Olho para o copo.
Sei o que é um copo.
Um copo tal qual os outros que tenho guardados no armário.

Conheço-lhe a forma, 
sei o que se sente quando se pega nele, 
quando lhe encosto os lábios e sorvo o que lá vive.
É-me mais que familiar e mais que rotineiro.

No entanto eu hoje ao acordar senti sede, 
fui à cozinha para beber água,
abri a torneira e fui à porta do armário branco.
Fiquei a olhar para aquilo onde se coloca a algo para beber...
Não consegui proferir o seu nome!

Ao som da água a escorrer solta e liberta,
tentei lutar contra mim!
Saber como se diz "copo".
Não era já dono da minha consciência e mente;
compreendi.

Notastes a minha ausência na cama, 
vieste em socorro, 
presenciaste tudo.
Sentei-te e sorrio uma vez só aos teus olhos de águas crescentes.
Abracei-te.
Em silêncio notado restámos.
A doença começa a tirar-me de dentro de mim.
Como disse o tal especialista em Alzheimer, 
temos de nos preparar.

Início o processo de decadência,
da demência que me vai levar à escuridão do esquecimento 
do meu rosto em qualquer reflexo.

De súbito a tua mão ainda quente da cama
afaga-me a testa em ofertado carinho nascente.
O meu olhar volta a ser teu.
Só uma frase em sentença nas minhas palavras 
de voz trémula e sem desejar assustar-te, 
sai da minha boca:

- "O meu maior medo no peito é não me lembrar de ti!"










26/04/2014

Malha

Um dia cheguei a casa tarde.
Dei com a minha Mãe acordada a fazer malha na cozinha às escuras.
Perguntei-lhe depois de me repor do pequeno susto:

- "Mãe estás a fazer malha aqui às escuras?
Até me assustei..."

- "Olha não tenho sono e assim não acordo a tua Irmã.
Vejo mais ou menos com a luz da rua."

-" Mas sabes o que estás a fazer?
Não ficas baralhada?
Isso assim sai bem?"

- "Olha assim é que isto vai sempre bem.
Se me enganar também não vejo nada errado."


Este episódio verdadeiro,
foi-me recordado pelos vários discursos e comentários políticos 
que ouvi neste dia.Governam-nos às escuras e pronto.




25/04/2014

Amor maior

O silêncio.
A passada quente,
firme e ritmada.
O que foi dito por entre lábios mordidos,
esvoaçados gemidos.
A lembrança da vontade negada
do desejo de esquecer o que não se devia lembrar.
O naufrágio no Mar desses seios sem recear.
A casa de paredes
com poemas de amor pendurados um a um.
Os dias das rotinas que deixam de ter as valências que não merecem.
A sequência de actos
que culminam no abraço mais longo e selado a lacre vermelho rubi.

O final de um beijo apetecido como se sede de beijos
fosse como a fome de água fresca!
A porta do quarto onde reside a paixão e a dádiva.
O leito do mapa feito dos amantes amados em eternidades.
A chuva que cai no beiral das varandas,
dá ritmo aos corpos unidos a imitarem as ondas dos Oceanos.

O sonho.
A paz a dois.
O tudo o que é só importante.
A alegria das mãos a par.
O verdadeiro milagre de alguém a amar!










24/04/2014

Trezentos e seis escudos

Hoje não tenho poemas.
Não trago nas frases, 
expressões e jogos de palavras com sentidos truncados.
Hoje falo apenas daquilo que presenciei,
do que vivi a olho nu e de uma golada só.
Corriqueiramente fui ao supermercado.
Aviei o que me era necessário e fui para a caixa para pagar a despesa.
À minha frente uma senhora de alguma idade e de aspecto simples.
Casaco de malha com borbotos do uso prolongado, 
saia de flanela coçada nas pontas e bainhas rebaixadas, 
camisola de algodão de cor meio sumida, 
sapatos pretos com os sinais distintos das pontas coladas com cola de contacto, 
meias pretas de lã cosidas e recosidas.
Cheirava a sabonete e não me apercebi de nenhum perfume, 
nem me parecia mesmo necessário.
Como jóias apenas duas alianças de ouro na mão esquerda, 
com a mais apertada a trancar em prisão meiga a mais larga.
Um sinal de luto tomado,
não carregado e carpido.
Cabelo branco, 
puxado para trás a acabar detido por dois ganchos, 
com a tinta a cair, 
meio negros, meio cinzas claros.
Rosto e faces mapeadas de rugas, 
mas com o lugar de cada uma bem assumido e mais que aceite.
Depois de me ter prestado a reparar nestes detalhes todos, 
vi que conversava com a menina da caixa.
Perguntava quanto faltava.
Dirigi os meus olhos para as suas compras como que por instinto.
Vi que era apenas um pão do mais barato feito de gelo e forno eléctrico, 
um pacote de leite de marca branca, 
uma embalagem de sopa de uma canja fingida pronta a ser preparada,
uma maçã reineta das mais pequenas.
Na máquina aparecia o total da soma: 1.53€.
A senhora de voz meiga e de vergonha coberta, 
tinha com ela nas mãos, 
um porta moedas de homem castanho escuro, 
rasgado a um canto e com traços de vincos riscados em diagonais.
Dele caíram sobre a mesa metálica da caixa todas as moedas que lá susteve.
Eram 0.98€.
A voz da senhora começou a lutar com o choro ao pedir à menina da caixa 
para tirar a sopa.
Sem um drama ou teatro.
Ainda não era conta certa.
Houve um silêncio que me pareceu ser de anos e não de instantes.
A menina da caixa estava a ficar impaciente,
o senhor que estava a berrar ao telemóvel atrás de mim, 
apreciou o momento para bufar enfaticamente 
como se a razão da espera não lhe fosse nada.
Dei por mim com a mão no ombro desta senhora e pedi-lhe em voz só por ela audível, 
vendo-lhe os olhos mareados de dor e revolta, 
se me deixava pagar as compras dela.
Ela apertou-me o braço com a mão tremida, 
só baixou a cabeça num aceno embaraçado de vergonha arcado,
de ao mesmo tempo uma alegria por um gesto de amizade e bondade de um estranho.
Paguei a conta da senhora e sem uma palavra mais trocada entre nós,
dei comigo nos braços dela num abraço tão doce quanto fugidio.

Pergunto-me apenas onde está o Portugal da Revolução de que sempre ouvi falar?  
Eu sou de 1973 e não conheci o que era a ditadura, 
mas escuto tanta gente que parece agora ter saudade desses tempos...
A única coisa boa que posso apontar a Salazar é que segundo o que já li,   
no prédio onde habitava e onde tinha um escritório do Estado,   
tinha dois contadores de luz e água separados. O de sua casa era pago por ele e o do escritório pago pelo Estado.  
O que somos agora para que esta senhora ande a alimentar-se com cêntimos?  
Que terra é esta onde impera outra lei podre?  
O que fazem aqueles senhores na assembleia que com a dialéctica e os jogos de tabuleiro 
de políticas sujas favorecidas aos mesmos de sempre,   
nos "governam"?
O que se comemora afinal amanhã no dia 25 de Abril?  
Quem são estes rostos que passam por nós e sobrevivem neste país  
ao contrário de viverem nele?

Mas que país afinal  é este?  
O tal da Revolução?







23/04/2014

A metade

Não necessito de ter-te sempre,
mas preciso ter-te.
Não preciso estar sempre a beijar-te,
mas desejo beijar-te longamente sem tempo fixado e destinado.

Preciso amar-te,
entregar-me a ti e permitir que me recebas!
Sei que talvez o pecado viva nisto tudo
mas não sei onde nem como.
Eu não o sinto presente no meio de nós!
Tudo o que nos digam é indiferente.
Já não me importam as palavras,
frases feitas, os que nos percorrem ao lado sem jeito.

Não consigo sorrir.
Não me recordo de como isso se faz a gosto e não de gesto forçado.
Penso em estar abraçado ao teu corpo em silêncios suados.
Tenho a marca dos teus toques,
os mapas feitos por ti na minha pele.
Não necessito de ter-te sempre.

Só não sei viver sem ti.









22/04/2014

Tépido

Alimento-me da escuridão.
Não por estar assim.
Não estou escuro dentro.
Estou apenas resguardado e arrumado numa gaveta.

Apreciei este tempo de amor que vivíamos.
Este paraíso sem nome, 
morada ou som familiar.
Fui luz contigo.
Fui dia, 
água fresca, 
Sol alto, 
Mar quente.
Cama de linho, relva húmida de orvalho.

Neste momento 
sou só um soneto sem final.
Uma noite a desejar uma madrugada ao menos.
Um desejo de sono contínuo e sem pressa no despertar.
Uma palavra sem a letra final.

Alimento-me da escuridão.
Aqui estou sereno. 
Nem em mim nem fora de mim.
Quando está claro vejo tudo o que me recorda de ti.
Não consigo estar assim à luz de tudo.
Logo, 
sou menos triste no escuro.




20/04/2014

Escuto-me

Escondo-me atrás de um som.
Perdido e achado,
nem aqui ou acolá.
Nem só ou ajuntado.
No meio de tudo;
não notado em lado nenhum,
nem num mapa ou num risco na areia húmida.

Assim fico e assim não me consigo 
desmembrar e subir alto, 
a um espaço onde eu possa enfim respirar.
Mas escondo-me atrás de um som.

Um grito ou uma falta de silêncio
que se escuta e não se agradece;
uma palavra que não consigo soletrar,
a que tenho apontada ao peito e escrita à margem do meu olhar.
Um corpo que observo de olhar sedento
no espelho e não sei de quem ele é.
Este desassossego é meu e partilha-lo 
seria o início do meu bem querer alucinado.

Sim escondo-me atrás de um som,
Oculto uma e outra lágrima frouxa que teima em deixar de o ser.
O meu descanso, 
a minha plenitude e cura,
não está onde vive a minha sombra a sofrer.
Sou uma cicatriz sem ferida ou nota de cor de carne. 
Gangreno mas ainda estou de pé.

Não tenho cheiro nem sei ter fé.











19/04/2014

Certeza

O "A".
A letra primeira.
O primeiro signo do alfa, 

o principio do abecedário.
O primeiro soldado 

de um batalhão que formam os exércitos
das palavras com que escrevo.
As frases são as batalhas que travo 

com o que me nasce no peito e o que se verte no papel.
 

A de tanto.
A dos meus ais.
De abraço, 

de amor, acreditar, assombro, 
aconchego, amado, abrigo, 
arrebatado, abençoado!
Apegado, acedido, acostumado, apetecido;

acertado até!
 

Todas palavras com começo da letra um.
A de amar-te até mais não saber amar.
A de dizer-te para andares comigo até que eu não possa ir mais.
A de quando dizes sem hesitar que me amas.
 

Acreditar que és aquela, a que traz a raiz de mim!
Aquela que faz de noite e dia, 

de Céu e Terra, 
o chão e o sonho serem nossos.
Quem me apresa e eu fico bem.
Acalmas-me a ira, saras a minha dor como se mais nada me doa.
És tu o início e o meu rumo. 

A que demarca o intervalo do batimento do meu coração!
A meia parte de mim que só assim 

transmuta-me e faz-me uno.
 

A de amar-te.
Tu. A Alfa.



You

Vejo-te bem na minha frente.
Tocas-me a testa, 
escutas a minha voz,
o meu grito surdo mudo e assente em nada.
Era por ti que eu esperava, 
aqui tinha a minha guarida.
Este local com as minhas pegadas marcadas,
testemunha tal medida.
Se daqui me levassem para outro espaço, 
poiso, cárcere ou lugar;
por ti me forçaria, remoído, 
trespassado, 
moribundo, 
a aqui voltar.
Sou um barco sem quilha, 
prometido ao Oceano escuro, 
féretro, gélido e fundo!
A tua luz é o que me guia à tona pelas ondas brancas 
de retorno a este Mundo.

Os teus cabelos, 
a cana do nariz, 
as pontas dos dedos das mãos femininas,
os teus seios hirtos, 
montanhas quentes do tamanho e alcance das minhas mãos;
as tuas pernas dadas à forma e modo da Lua, 
acenam-me dançando a caminhar na rua!
Quero-me teu prisioneiro, 
quero a minha língua a contornar-te inteira e nua!
És tu poesia e com tal feito de destino a jeito na pedra gravado, 
eu serei um poema.
Nascido naufrago amigado, 
só desejo a ti como se reza aos céus.

Tu és filme, fita, amor, paixão, luxuria!
Sou eu o teu espaço e sala de cinema.
Tu és a única morada da minha rua.
Estes meus olhos de vida espelhados neste argumento, 
seriam só ungidos pelos teus.