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24/04/2014

Trezentos e seis escudos

Hoje não tenho poemas.
Não trago nas frases, 
expressões e jogos de palavras com sentidos truncados.
Hoje falo apenas daquilo que presenciei,
do que vivi a olho nu e de uma golada só.
Corriqueiramente fui ao supermercado.
Aviei o que me era necessário e fui para a caixa para pagar a despesa.
À minha frente uma senhora de alguma idade e de aspecto simples.
Casaco de malha com borbotos do uso prolongado, 
saia de flanela coçada nas pontas e bainhas rebaixadas, 
camisola de algodão de cor meio sumida, 
sapatos pretos com os sinais distintos das pontas coladas com cola de contacto, 
meias pretas de lã cosidas e recosidas.
Cheirava a sabonete e não me apercebi de nenhum perfume, 
nem me parecia mesmo necessário.
Como jóias apenas duas alianças de ouro na mão esquerda, 
com a mais apertada a trancar em prisão meiga a mais larga.
Um sinal de luto tomado,
não carregado e carpido.
Cabelo branco, 
puxado para trás a acabar detido por dois ganchos, 
com a tinta a cair, 
meio negros, meio cinzas claros.
Rosto e faces mapeadas de rugas, 
mas com o lugar de cada uma bem assumido e mais que aceite.
Depois de me ter prestado a reparar nestes detalhes todos, 
vi que conversava com a menina da caixa.
Perguntava quanto faltava.
Dirigi os meus olhos para as suas compras como que por instinto.
Vi que era apenas um pão do mais barato feito de gelo e forno eléctrico, 
um pacote de leite de marca branca, 
uma embalagem de sopa de uma canja fingida pronta a ser preparada,
uma maçã reineta das mais pequenas.
Na máquina aparecia o total da soma: 1.53€.
A senhora de voz meiga e de vergonha coberta, 
tinha com ela nas mãos, 
um porta moedas de homem castanho escuro, 
rasgado a um canto e com traços de vincos riscados em diagonais.
Dele caíram sobre a mesa metálica da caixa todas as moedas que lá susteve.
Eram 0.98€.
A voz da senhora começou a lutar com o choro ao pedir à menina da caixa 
para tirar a sopa.
Sem um drama ou teatro.
Ainda não era conta certa.
Houve um silêncio que me pareceu ser de anos e não de instantes.
A menina da caixa estava a ficar impaciente,
o senhor que estava a berrar ao telemóvel atrás de mim, 
apreciou o momento para bufar enfaticamente 
como se a razão da espera não lhe fosse nada.
Dei por mim com a mão no ombro desta senhora e pedi-lhe em voz só por ela audível, 
vendo-lhe os olhos mareados de dor e revolta, 
se me deixava pagar as compras dela.
Ela apertou-me o braço com a mão tremida, 
só baixou a cabeça num aceno embaraçado de vergonha arcado,
de ao mesmo tempo uma alegria por um gesto de amizade e bondade de um estranho.
Paguei a conta da senhora e sem uma palavra mais trocada entre nós,
dei comigo nos braços dela num abraço tão doce quanto fugidio.

Pergunto-me apenas onde está o Portugal da Revolução de que sempre ouvi falar?  
Eu sou de 1973 e não conheci o que era a ditadura, 
mas escuto tanta gente que parece agora ter saudade desses tempos...
A única coisa boa que posso apontar a Salazar é que segundo o que já li,   
no prédio onde habitava e onde tinha um escritório do Estado,   
tinha dois contadores de luz e água separados. O de sua casa era pago por ele e o do escritório pago pelo Estado.  
O que somos agora para que esta senhora ande a alimentar-se com cêntimos?  
Que terra é esta onde impera outra lei podre?  
O que fazem aqueles senhores na assembleia que com a dialéctica e os jogos de tabuleiro 
de políticas sujas favorecidas aos mesmos de sempre,   
nos "governam"?
O que se comemora afinal amanhã no dia 25 de Abril?  
Quem são estes rostos que passam por nós e sobrevivem neste país  
ao contrário de viverem nele?

Mas que país afinal  é este?  
O tal da Revolução?