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12/04/2014

Adelaide

Sou a Adelaide.
Este meu nome é simples,
antiquado aos padrões de hoje.
Fácil de dizer e talvez por esse motivo ainda me recorde dele.
Chamo-me Adelaide.
Tenho já a idade de noventa e três anos.
Noventa e três anos a prestar contas nesta vida.
Desses tantos,
sete que aqui sou reclusa na minha casa de cinquenta e dois anos.
As minhas pernas já o deixaram de ser.
Aparentemente só fazem o que elas querem.
A elas rendi-me contrariada.
Aqui vou migrando do quarto para a cozinha, 
da cozinha para a salinha e pouco mais me espalho.
Vivo do pouco que tenho e já tenho quase nada.
Moro numa casinha pequenita que já ferveu de vida mas que hoje,
vive com as paredes ao alto, pouco mais.
Essas mesmas paredes de tijolo e argamassa manual
como já não se fazem;
estão pilhadas de memórias mas sem recordações a olho nu.
Desfiz-me de todas as fotografias que tinha, 
dei-as ou deitei-as ao lume.
De toda a maneira já lhes conhecia bem a ordem nos álbuns,
o que cada uma tinha parado e apresado no tempo.
Para me angustiar já me basta fechar os olhos a fundo,
ficar-me no meu íntimo.
O meu mínimo prazer, 
o que me dá um pouquinho de alegria,
são as raras idas á varanda da minha casinha.
Um alguém que passa e perde o seu tempo
a dar-me os bons dias ou boas tardes.
Respondo sem ser por automatismo.
Por dias acabo por não conversar com ninguém.
Aí deposito-me nesta minha solidão padecida
que egoisticamente parece-me maior que qualquer outra.
Com a vista que já não tenho ouço a televisão.
Adivinho as sombras e luzes de cores bailadas.
Vivo só como já sabem.
Os que me importam já me esperam.
Não tenho mais ninguém por aí.
Moro retida em casa rendida a este meu calabouço preferido e imperfeito.
O que sofro agora ofereço a Deus.
Não sei nada de Natal, 
aniversário ou lá o que é isso! 
Espero só a bênção do fechar de olhos.
Espero o banho fresco e libertador da morte.

O meu nome é Adelaide.
Já fui gente feliz uma vez num outro tempo.