Adormecer. Deixar ir a escuridão em lugar do sangue nas veias. Abandonar o corpo ao jugo meloso da cama desfeita. Sentir o sono anunciar a sua pertença e morrer nele coberto no lençol manto mortalha. Esquecimento repousado.
Nem que seja por uma hora, dormir sem memória de estar acordado. A quimérica ilusão de paz.
Uma casa como que encantada. O lugar do meio num sofá de três lugares. O seio direito. As estradas que não são denotadas por não irem a lugar nenhum. A critica dada em voz alta. Encontro de elogios. Arremesso uma gota de chuva. Sensações na pele que a mesma encrespam. Oposição de costas molhadas. Sublimações respiradas. Recantos selados na alma. A cor de limão. Sopas de café. As latas de feijão manteiga empoleiradas em padrões arquitectónicos no hiper. A glória da juba de Caetano. O corredor da porta de entrada com soalho brilhante em madeira anciã polida. As garras da gata nas aduelas mastigadas. Cemitério de desejos.
Reparo e recordo estas imagens, sensações, atalhos... Não sei sequer porquê.
Alquebro-me.
Olha para elas como se vê uma lista de compras por fazer, esquecida num bolso de um casaco arrumado.
Eras "aquela" para mim. Eu não era "aquele" para ti.
Não quero ser mais o "aquele" de ninguém.
Quem me quiser, tem de saber o meu nome, o meu cheiro, reconhecer as minhas pegadas no escuro, ter a sombra da minha mão no peito. Será assim, a Mulher para mim.
Duas mãos. Dois dedos de conversa. Dois segredos atirados ao meio das bocas. Duas cabeças em razão de não terem razão a ter.
Um par. O duo que passa a ser um sem par. O que se torna único na vida de dois seres separados na carne, mas com a alma fundida. A Ursa Maior e a Menor sem saber qual é uma e a outra. Dois corações que devem ser a união ao mesmo peito. Um par de asas do mesmo Anjo. Duas portas que só dão para o mesmo lugar. A confluência de duas sendas, num trilho pela vida fora. Um rio com duas nascentes.
Tudo isto deverá ser isto. O amor tem de ter estes predicados.
Escrevo. Escrevi e faço disso uma obra e missão do dia à dia. Escrevo e não quero nunca mais parar de escrever. Não porque mereça ser lido. Não por ilusões de grandeza. Só porque isso faz de mim o que eu sou.
A tinta descascada da parede sem tinta por completo. A sombra que cai sobre o chão seco de cimento pedra gelo. O gesto da manhã ao desfiar o princípio do dia. Os prometidos desejos a desejar não serem mais necessários de desejar. Os sapos gordos, verdes, asquerosos, amenos e posicionados também no seu lugar. As lágrimas retidas quando as pálpebras se fecham e se trancam ao mundo em cegueira assumida. Todas as folhas tombadas aos pés das árvores, testemunhas de uma mudança sofrida. Todos os frutos do pomar dos sonhos das crianças que já ousam a sonhar. Somente as toalhas de banho usadas, pistas deixadas do perfume da pele misturada dos amantes. Somente as folhas em branco de um livro onde se escreve um nome vezes sem conta. Rosário de lábios e bocas em beijos vitais e incessantes. Rosário de recordações de perdões dados, apartados, gemidos, desconsolados, adocicados e desmedidos. Trago tudo dentro mim. Por fora e do meu avesso.
Sobre a água de fogo. Em cima das asas da gaivota teimosa em voar ao vento súbito. Sob as folhas o eucalipto charmoso e descascadamente despido. Estou nem aqui nem acolá. Vou passeando ao modo dos canaviais que viajam tanto mas sem sair sequer do lugar...
Antes que murchem todos os amores, antes que a luz se escape de vez da janela deste mundo, antes que o mar seja só uma onda sem par, antes que os cascos da montada não descubram mais o caminho para as terras novas, antes que a ceifa finde e não haja mais trigo a ceifar, antes que as paredes caiadas quedem-se negras do descuido, antes que o meu olhar seja olhar de um mudo, antes que o deserto tenha água a céu aberto, antes que as baleias abandonem os oceanos rasos, antes de saber o meu rosto tacteado, antes que o fogo deste lume irado sucumba em mim, antes que uma virgula esteja no lugar de um ponto final,
Choro-te. Sei o teu nome. Antes de me esquecer de lembrar-me de ti.
Milagre de luz. Milagre sem ser. Milagre dado ao anoitecer. Milagre fugidio. Milagre açoitado com leveza das palavras acostadas. Milagre soberbo e pranteado. Milagre vivido por ser um milagre sorrido. Milagre da única lembrança que sobrevive. Milagre repetido. Milagre que não o é. Milagre arrebatado ao som do trovão. Milagre passado. Milagre do passado.
Não és mais um milagre. Só a recordação breve do regaço de um alguém que eu amei.
Eu digo que gosto de ti. Digo que gosto de ti como quem diz que te ama. Como sinto este amor, prefiro dizer-te que gosto muito de ti. Dizer "amo-te" parece já muito corriqueiro. "Amo-te" soa-me a algo já visto, fácil demais de ser dito. Soa-me a somenos! "Gosto de ti" é dito com verdade! Gostar de alguém assim é pouco usual. Sei que gostas de mim. Gosto de ti. Eu gosto tanto de ti! Como quem muito te ama...
Como um mar sem marés. Onda sem espuma alva e borbulhante. Como um rio sem foz.
Incompleto. Incerto e com a certeza disso.
Como um prato sem margens. Um relógio sem ponteiros a marcar as distâncias. Tal qual as gotas de chuva que param a meio do céu e gelam. Os charcos de água parada no momento até que um pé nu os pisa. Um mapa sem os nomes das terras, só os números das estradas.
Sinto-me assim nestes estados...
Tenho a dor apenas com o nome que lhe dei. Assim a levo aos meus braços e a escondo em silêncios gritados em mim.
Uma rosa de pedra. A echarpe esquecida na ombreira do sofá. O choro deitado fora. As luzes a sombrear as ruas do meu caminho, como se o meu caminho fosse das ruas. Suspiros por dar ao ar da noite. Remorsos em chagas deitadas. Raivas consumadas numa cama de lençóis molhados com suor e outros líquidos doces nascidos dos nossos corpos. Momentos em nuvens brancas promessas de dias sem chuva ou de dias de calor terno. O mar azul e mais azul, sempre azul e frio, fresco, forte, farto, frontal e sem fim!
Uma rosa de pedra. Imagem repetida do meu coração. Até ao pormenor dos espinhos...
Não entendo o que escreves. Não vejo nas palavras o seu directo sentido e por aí, vejo que não escreves para mim, para o meu entendimento. Não trago neste pensamento a ideia fácil do abandono em esquecimento. Sei-me já esquecido e sem lugar no teu lugar. No entanto, bastaria só um murmúrio teu. Eu diria também então: "-Vamos viver!."
As horas não sabem a nada. Os dias não comportam nenhum sabor. Trinco as semanas como quem morde uma bigorna rija e sem vestes.. Não trago sangue nas veias. Sequei. Sou um com o ponto de rotura de tudo e de todos.
Neste dormitar inconspícuo, passam os segundos por mim, como um gesto de adeus no breu dos primeiros passos da noite.
As horas parecem já não saber quem são. Conto o tempo por elas, as anónimas.
Uma vez. Um segredo que já é conhecido e perde o seu sentido, dando-se como sentido por já ser sabido. Um sorriso. Um esgar de vergonha redonda. Um olhar e um desejo de um beijo pedido a duas vozes. Uma vez. O primeiro encontro. Os olhos que sobem montanhas em maravilha.
Uma vez. Uma palavra primeira. O primeiro suspiro de peso leve.
És mais que uma voz ao longe ao telefone. Mais que uma luz que se acende e aclara tudo. És como água nova e eu sou a abandonada nora a quem beijas e devolves a vida.
És tu o meu nós. És e eu agora sou. Tu asa e eu céu. Eu mar e tu areia imensa.
És mais do que pensas. És um poema onde eu sou estrofe. Se sou sul, é porque tu és norte. Mesmo longe estás perto.
Quero o teu perfume. Quero ver os teus olhos quando despertas. Desejo descobrir os teus jeitos quando dormes. Quero conhecer o sabor da tua boca. Saber como é ter a tua mão abraçada na minha. Ver como descascas a fruta. Quero reconhecer a tua roupa no estendal. Ser eu em quem tu te aninhas. Ouvir o som dos teus passos com chinelas de enfiar no dedo. Sentir-te nas pontas dos meus dedos. Quero ser teu.
Estão em silêncio sentados lado a lado. Mãos embrulhadas em sinal de união natural. Expressões serenas, olhares trocados sem vocalizações, sem frases feitas e fúteis. Vão juntos não sei para onde. Reparo neles por estarem assim de grosso modo, perfeitamente, à vontade um no outro. Em pequenos gestos tão meigos, que só podem ser por amor. Chega a ultima estação, o fim. Saem eles e saio eu. Perco-lhes o rasto. Fico-lhes com a memória bela.
Vi os silêncios ficarem sem razão. Vi os momentos ganharem o seu pão. Vi as viagens a saberem que trazem um destino na mão.
Vi que as ditas dores, podem ser só recordações de uma passagem de mágoas a esperança.
Vi que as janelas fechadas podem estar só encostadas em tímida assunção a desejo de ar fresco.
Vi que numa palavra o Sol renasce e tolhe a noite anafada. Vi que as pedras podem ser chão. Vi que o caminho é uma escolha, não uma imposição.
Vi que sei o que é a chuva, o mar, as sebes verdes e frescas, as luzes da ponte ao longe que desejamos apagar num sopro, a pele dos pêssegos peludos que me arrepia, o cheiro dos incensos imortais imprescindíveis, a luz dos olhos de uma criança...
Vi agora tudo isto, numa estranha voz rouca, forte, de doçura intensa que recorda-me que ainda é bom estar vivo.
Laranjas. Arrumadas no centro da mesa. Doces e anafadas. O cesto da roupa no lugar do cesto da roupa. O espelho com a nódoa que não é nódoa, mas falha simples no espelhado. As velhas fotografias que tem imagens de sítios já novos.
Tudo tem o lugar presumido. Menos eu.
Toco a distância e afasto o que está perto. Estou entre o espaço que medeia o principio do céu com o fundo do mar.
Saro as chagas na pele. Corro com as chuvas descaídas. Vejo as asas daquela gaivota alva, a deixar cicatrizes molhadas nas águas do rio. Sobejam-me as palavras que não te disse. Recebo as frases mordidas dos teus olhos calados. Não estás aqui.
Não. Essas palavras tidas deste modo baixo, não! Escrevo, falo, rumino e cuspo em revolta cardada!
Não gosto da ideia de que se deixem repousar, que se coloquem de molho, os pedidos do peito, as frases a preceito do coração! Aquilo que se dá num milagre próprio... Efémero e impossível de religar. Não se tomem pelo que não são.
Se a palavra é o que é, se o que se diz é o que a razão não limita, se o que as mãos e dedos traduzem em sons, se o céu é o céu e eu sou só eu, porque colocar bâton vermelho sedutor, num porco engordado para a matança?
Escrevo. Se o faço bem ou não, interessa-me de grosso modo. Para mim, um minuto é mais que sessenta segundos e cada segundo, tem de valer por sessenta minutos. Mal ou bem.
Só quero que quem me leia, sinta o que eu sentia, ou sinta o que já sentiu ou irá ter por seu um dia.
O resto, é o resto e tem por si, a verdade que tem. Podem ser sombras, ecos, fruta e sal doce. Como dizia José Carlos Ary dos Santos, "Eu quando digo a palavra merda, na minha boca ela é também poesia".
Mas façam o que entenderem. O papel é de todos. As palavras não são só minhas.
Telhados doces. Janelas com cortinas de rendas de outros tempos. Portas com aldrabas de ferro fundido negro. Paredes de tantos segredos como tijolos. Ruas com pedras polidas de tantos passos. Arcadas mães de redondos beijos opacos. Candeeiros baços ornamentados com desenhos passados. Varandas pejadas de flores em vasos em canteiros rasinhos. A drogaria da esquina apertada entre edifícios a tombar. O sapateiro com a montra abundante de sapatos sem par. O fontanário seco agora, só detendo a memória dos cântaros cheios. A campainha nervosa do eléctrico amarelo. O eco das peixeiras ampliado pelas canastras reluzentes. As noites de fado dos marialvas e das cantadeiras. As dores das viúvas de xailes negros. As esquinas escuras das prostitutas tristes. Os combates e as rixas de morte entre os malditos. Passeios estreitos com pedrinhas em desenhos idos. As fachadas de azulejo azul e branco. Os números das portas em placas de chapa preta.
Bairros desta Lisboa. Afago de poetas. Moradas de tantos. Jardins com bancos de um tempo indeferido. Ruas, vielas e cantinhos destas pessoas do tempo da outra senhora.
Na minha cama jaz o teu perfume. Em meu corpo o recado da tua língua. Nas minhas mãos está presente em leve momento, a chama dos teus seios despertos. Nos meus cabelos os sulcos penteados deixados pelos teus dedos. Neste meu peito notam-se ainda as gotas de suor nascidas pela nossa entrega. Na ponta dos meus dedos, tenho o teu cheiro profundo. A minha boca guarda nela, o sabor do teu ventre húmido. Contudo, estou assim parado. sentado na cama solteira que foi nossa. Procuro só nos meus ouvidos, a lembrança da tua voz. Sofro a falta do teu olhar.
Deixa-me beijar-te. Mesmo que agora sintas que não me queres beijar. Deixa que eu só te beije. Que apenas isso eu faça. Como se a minha vida acabe a seguir a esse instante. Seria o teu beijo o soneto final na minha pouco demorada passagem por aqui. Deixa que os meus lábios sejam o par húmido dos teus. Dá-me um beijo... Quente ou até frio. Tu ainda te lembras de como é a minha boca? Sabes ainda onde fica a minha cama? Toca a minha pele que não se esquece do velejar dos teus dedos nela... Dá-me um beijo. Deixa-me beijar-te.
Mesmo que não tenhas depois mais beijos para mim...
Céus como tecto sem espaços entre as nuvens. Copos vazios e a monte em cima da mesa travada. Rachas na pintura das paredes das salas da casa roxa. Marcas de pó que assinalam a passagem de um dedo distraído. O segredo por dizer em papel escrito. A toalha turca estendida ainda, ruim ao sol seco e ríspido. O chão de mármore frio, com os desenhos polidos dos passos de intempéries. A calma das plantas de enfeite, sem vida e com o arame selado a ferrugem.
Os passos em eco de outros dias em que em eco não eram os passos. Os vidros das varandas sujos das poeiras de constantes ventos batentes. Gavetas fechadas e entreabertas, denotando desleixe, abandonos. Os lençóis intragáveis da cama de casal que já não o é. Perdeu o som da vida o rádio idoso, doutros serões de companhias dadas. Loiças azuis prenhas de lábios e marcas de segredos. Nada. Nada e nada. Silêncio e mais silêncios encaixados e amontoados nos dias. O esqueleto é a amurada deste outrora doce lar. O que se tinha, quem se tinha e trazia junto ao peito, já não vive, não mora, não está. Céus como tecto sem espaços entre as nuvens.
Uma ruína de uma lágrima nesta casa sem restos de família. Fechar os olhos é como morder o passado.
Embala-me na tua voz coberta de distâncias mas cativa no meu ouvido. Adormeço no quebrantar das marés de sonhos que desaguam em ti. Deito-me no leito a que dás vida para nós. Suplico um tempo só nosso... Só as palavras deixam de ser precisas. Estou quase pacificado. Viveria até ao suspiro findado neste amar... Trás-me contigo.
Eu. Estou aqui. Sentado, prostrado, arrumado, neste lugar fixo e desacorrentado.
Eu. Despido de tudo. Nu de medo, dos segredos, das dores repetidas, das raivas cuspidas, dos sentimentos ascos. Livre das lembranças e assolado pelas memórias.
Eu. com os toques e os tiques das desgraças, com os endereços das janelas das lágrimas, das discussões infindáveis, das noções de dor variadamente invariáveis. Eu e tu. Somos uma rua funda que acaba num deserto de chuva aonde as lágrimas não se ocultam nem secam por si. Mas existimos eu e tu.