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27/01/2014

Um soldado de chumbo

Tomo o meu lugar num canto do chão de terra ensopado.
Sento-me e dou-me conta do escuro que está.
Uma ausência de luz que já não me atemoriza.
Cerro os olhos a ver se choro mas não sou capaz de ter esse alívio.
Escutam-se gritos de angústia, dor e raiva.
Rotineiro.
Ecoam e espalham-se nos céus cor de cinza.
Apelo e desejo a surdez.
Às narinas chegam-me os odores que já são familiares;
da pólvora queimada, 
da carne podre ou a arder, a tua, a dele e a minha.
O sangue está em poças vermelhas e moles.
É uma paisagem de bocados de tudo e identificáveis como tal.
Dou um grito.
Mesmo assim a realidade não se transmuta;
no fim do meu grito fica o presente como está.
Vejo corpos despedaçados e com outras partes semeadas que não reconheço.
Identifico-os pelas fardas, pelos tiques no trajar, 
pelos ditos nos ombros.
São os que conheci e quem não cheguei a conhecer.
Os que eram deste lado e os que pertencem ao lado de lá.
Tenho os dedos com sangue quente e molhado ainda.
Escapei a uma mina.
O desgraçado que ia ao meu lado não.
As suas pernas não sei para onde foram e ele só gritava pelas botas!
Eu até procurei-as;
passaram-se eternidades de segundos e veio um silêncio seguro. 
Não foi necessário procurar mais.

Tudo isto passa no meu rosto.
Sinto-o e apercebo-me das lágrimas.
Em volta daqui só dor, ira, loucura, morte e injustiça!
Jogam com todos nós!
Sei de aldeias massacradas, ataques de desgaste, assassínios de mulheres e crianças!
Incidências de guerra!
Crimes de guerra!
Tudo é feio, porco, negro, inumano!
Retiram-nos a humanidade mais básica!
Assombro-me com a imagem de duas meninas,
uma com a outra inanimada ao colo com um pé deambulante por um fio de pele...
As metralhadoras, os morteiros, as explosões; 
as balas a embaterem nas paredes destas ruínas.
O ar repleto de fumo que me seca a garganta e suja o olhar.
Não sou capaz de proferir uma frase contida sem desespero!

Desperto...
Húmido e suado como se tivesse saído de dentro de água.
Sento-me na beira da cama que já foi de dois.
Consigo voltar a mim e tomar conta do meu pensamento.
Abro a gaveta da cabeceira e tomo o tridente do demo;
está bem mantido, oleado, reluzente e carregado.
Pronto a servir-me.

Chamo-lhe irmão.
Aproximo o cano da fronte e sinto o frio do seu toque.
Enfim lá verto uma só lágrima.
Todos os pesadelos tomam o seu posto no silêncio do esquecimento.
Apertarei o gatilho e nada mais me assombrará.
Nada.
Volto para onde vim.



Não morram por qualquer desculpa.
Por ideais que não vos merecem!