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11/01/2014

O começo de um livro que nunca o foi

"...A Festa de Natal para os Filhos dos Empregados da Petroquímica e Gás de Portugal.
Era a altura do ano mais importante segundo o meu calendário infantil, 
porque simplesmente era também do mesmo modo, o início da aproximação do Natal e de tudo o que isso arrastava em si.
Estou a pensar nas prendas que recebia, nos doces e na programação da televisão que se tornava muito mais aliciante numa época em que apenas se dispunha de dois canais.
Em termos familiares sempre fomos apenas a família mais imediata.
O meu Pai, a minha Mãe, as minhas três Irmãs, os meus Cunhados e Sobrinhos.
Na noite de Natal eram somente os que se encontravam em casa.

O meu Pai, a minha Mãe, a minha Irmã Isabel e eu o querubim.
Estava a esquecer-me da cadelinha, a Fáruca. Também era da família.
Víamos muita televisão, falava-se, comíamos o bacalhau; 

abriam-se as prendas mesmo já sabendo o que continham os embrulhos ainda embrulhados ou já desembrulhados.
Mas estou a perder o meu sentido.
Retomando o tema tudo se passava assim:
Numa noite da primeira semana de Dezembro o Albino, o meu Pai, chegava a casa perto das sete horas.
O meu primeiro sinal era precisamente a hora de chegada, 

esta sua presença cedo em casa.
O Albino trabalhava na já referida empresa, sendo bombeiro e fazendo trabalho de turno.
Das oito às dezasseis, das dezasseis à meia noite e da meia noite às oito com duas folgas a cada cinco dias.
Para fazer face a um ordenado não indicado para uma casa de quatro pessoas e de um rendimento único, o Pai Albino trabalhava numa pequena oficina de carpintaria com espaço suficiente para caber um roupeiro ou um móvel de cozinha.

Tinha o mesmo oficio que o pai de Jesus como se orgulhava de reivindicar.
Todos os dias fosse qual fosse o turno, ele ia trabalhar um pouco na “Carpintaria”.

Quase sempre duas a três horas. 
Também nos Sábados e Domingos lá estava.
O meu Pai era um homem que não tinha mais que a antiga quarta classe.

Falava com os olhos e não discutia aquilo que não percebia ou de assuntos que não os seus. Era afectuoso quanto baste.
Amava os filhos sem excepção e dava-nos a perceber esse tal amor por exemplo desta maneira:
Ele nunca comprou um par de sapatos para ele.

Sempre que a minha Mãe lhe ralhava para o obrigar a comprar algo, retornava a casa com compras para nós e afirmava que não havia aparecido nada ao gosto dele.
Eu falo de roupa, calçado, comida, livros. 

Brinquedos era só com a Judite; os Legos e os carrinhos.
O meu Pai era um homem bom, que trabalhou toda a sua vida e que nunca deixou de lutar em função de quem lhe pertencia.
Erguia-se da cama muito cedo, seis, seis e meia da manhã.
Não me recordo de o ver a acordar mais tarde que isso mesmo de férias nos meses de Agosto, lá em Ribeira de Fráguas.
Compensando era um dorminhoco afável e com afinco. Por vezes às nove da noite já estava na cama. Só ficava mais um pouco acordado se estava a passar um filme de ficção científica ou um western. Era do Benfica, mas era dos seus defeitos menores.
Tinha o hábito de conduzir sempre com o pé em cima da embraiagem e não sei porque é que me recordo disto agora.

Conduzia tudo menos mota.
Amava a minha Mãe e não era ninguém sem ela.
Haviam casado na Igreja do Beato e o meu Pai foi de fato azul escuro, 

com luvas cremes a dar com a gravata. 
Os dois passaram a noite de núpcias num quarto alugado em Moscavide e o seu primeiro jantar como casal, foi frango assado num restaurante no Poço do Bispo.
Foi um bom pai, um bom marido, um homem bom.
Mas continuando sobre a Festa de Natal, eu via-o chegar cedo e pedir à Judite para aprontar o comer para ir com o Menino escolher a prenda da Fábrica.

Ele dizia isto alto para eu o ouvir.
A minha Mãe aprontava-me com uma roupa boa e o meu Pai, acabado de tomar banho e a cheirar a musk depois da barba desfeita, vinha com o blusão que as minhas Irmãs lhe haviam oferecido com o dinheiro da costura.
Dizia-me: 

-“Vamos Paulo, vamos depressa para virmos depressa!”
Descíamos as escadas e subíamos a rua lado a lado, a falar de carros ou da escola.
O meu Pai não gostava de dar a mão e eu agarrava-lhe a manga do blusão aos bocadinhos.
Chegados ao Salão da Fábrica onde se encontravam em exposição os brinquedos todos,
o Albino ia atrás de mim e dizia-me para escolher bem;

para não escolher logo à primeira.
-“São todos muito bonitos e o Pai não te pode dar nenhum destes mas ajuda-te 

a escolher o melhor.”
Recordo o olhar dele.
Em parte feliz por eu estar ali por causa dele, em parte triste por ser a única forma de chegar a ter determinado brinquedo.
Eu escolhia sempre dois ou três e dizia ao Pai para ser ele a escolher um deles, 

não importava qual e era assim feito.
Era a altura de irmos embora e com os colegas dele já todos cá fora, 

o meu Pai dizia-lhes:
-“Está cada dia maior o meu miúdo!”
Voltávamos a casa, ele passava a mão fria e rija na minha cabeça e ia deitar-se.
A Festa era sempre num sábado de manhã no Cinema Império e o meu Pai nunca deixou de ir comigo.
 

Aí eu recebia a prenda retornando com ela para casa, 
para a abrir só no dia de Natal."