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01/01/2014

A Senhora de olhos meigos

Habito na rua.
Na mesma faço a minha casa de paredes finas e translúcidas.
Nos passeios gastos de calçadas polidas,
o meu corredor de infindável comprimento.
Nos caixotes de lixo a minha dispensa e fogão onde descubro mil iguarias.
Das soleiras das portas dos edifícios grandes, altos e vistosos, 
apresentam-se o meu quarto e cama com lençóis de luares sem luz.
No chão de pedra crio o meu colchão de penas.
As escadas do metro abrigam-me as costas.
Nos cantos e recantos;
nas esquinas dos jardins públicos está o meu quarto de banho 
com chão de mármore fresco.
Das gotas de chuva faço o meu chuveiro quente e nelas
tomo banhos demorados em espuma alva que não me molha.
Nos degraus das lojas da Calçada da Estrela, 
crio as minhas montras onde vendo artigos de primeira e
não carrinhos sem rodas ou bonecas de vestes rasgadas.

Os meus olhos são a minha voz.
Eles são a minha ira e meiguice,
as minhas lágrimas e sorrisos.
As minhas mãos buscam por quem as acalente.
Por quem as abrace.

Não sei quando faço anos não porque não saiba.
Sei é que dia é hoje somente.
Desconheço o meu nome porque as pessoas, tantos nomes já me deram.
Não sei quando é dia de Natal porque já não sei o que é isso do "Natal".

Sei quando está frio e gelada até aos ossos me sinto!
Quando sinto fome e o lixo é a minha mesa posta!
Sou escorraçada por tresandar a pedaços usados de gente.

Olham-me com medo,
com asco e nojo.
Conheço a vontade de sorrir mas já não me recordo de como se faz isso.
Consideram-me nada e nada de mim sabem.
Eu sou gente;
sou mendiga mas não me façam também mendigar 
a dor do desejar ainda assim estar viva!