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07/11/2014

Regresso

Deixei-te uma carta escrita há vinte anos 
debaixo da tua porta.
Ficou lá este tempo todo.
Sem que o vento ou os teus pés lhe tocassem.
Nem as tuas mãos lhe mexeram, 
ou os teus olhos a quiseram ler.
Chorei-a em silêncios de horas.
Sei de cor as palavras que lá escrevi.
Memorizei-as todas a ferro em brasa,
marcadas no coração.
Foram a despedida de outro tempo.
O adeus ao amor.
A minha vida estava plena de ti e só eu,
era vida para ti.
Eu prendia-te.
Era um peso.

Fui embora.
Parti para outra terra,
um ar diferente, tristeza nova.
Sem arrependimento, 
só a certeza da cruz.
Fiz a vida noutra vida.
Dei-me a tudo o que era trabalho.
Não pertenci a mais ninguém.
Fiz-me sombra.
Fui alma sem traço.
Corpo que não ocupa espaço.
Pedaço de carne plantado 
dia a dia nas ruas.
O caule sem flor.

Chego agora à tua porta.
Homem inacabado e usado.
Atormentado que não sabe 
o que esperar no teu rosto.

Estás nas escadas.
Sentada e diferente.
Mais velha e mais bela ainda.
As tuas mãos estão como dantes.
O teu rosto brilhante.

Olhas para mim.
Sabes quem eu sou.
Antes que eu possa falar, ages.


Abraças-me.
Nunca me esqueci de ti.