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16/02/2014

Outro milagre

Eu sou. 
Sou um milagre numa esquina.
Sou uma ruína de tijolo e betão armado, 
memória esquecida de um edifício passado.

Sou um vício sem sentido, 
como se vício sentido necessitasse eu ser.
Sou uma marca no meio do pó;
uma impressão deixada, 
repousada e testemunhada.
Um vazio comprovador de algo que já não está, 
não existe ou sobrevive.
Algo que já não é afiançado.
Sou uma gota no fim de um copo;
aquela mesma gota que se descarta com desdém.
Sou um pedaço de pão velho, 
uma côdea dura e rija que não se come ou trinca.
Sou um sapato velho sem par e roto do caminhar.

Assemelho-me a um carro em estado de sucata, 
corroído e sem vida;
forrado de vidas.
Sou uma janela partida 
com uma cortina despedaçada esvoaçando ao vento, 
que já não serve de miradouro a ninguém.
Sou o que não fui mais;
uma sombra de um rasto,
a leve pegada de uma aparição, 
uma figura em contorno de giz que facilmente se apaga.
Sou um segredo arquivado.
Um lençol escondido numa arca a apodrecer por madeira ferida de bicho.

Sou um recado que não se deu.
O foguete de lágrimas que não rebentou;
sou o fim de um filme sem legendas,
a ternura da melancolia do esquecimento e no entanto;
sou eu.

Eu sou.
Sou!