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12/09/2015

Às escuras numa outra luz

Havia faltado a luz em casa.
Uma quebra geral nalgum Posto de Transformação.
Nem luz nos candeeiros da rua.
Um fenómeno quase tão raro como saboroso.
O não haver energia impede logo que existam outras formas de distracção,
que o que é importante venha de novo à superfície.
Faltando a luz, não há televisão e os seus males e escapes embrutecedores.
Não se podem ligar os computadores e as baterias dos telemóveis e outros que tais,
não duram para sempre.
Tudo se aproxima do pensamento e até o ato de pensar, passa a ser instintivo, 
sublime de novo, nesta  semi-escuridão.

Nestes momentos que custam a passar por nós, 
deito-me na expectativa de adormecer de um folgo só.
Sem ter o peso das recordações, dos passados distantes ou próximos;
das maleitas do dia e dores das horas que ainda estão por perto.
Assim não suportaria a escuridão da casa.

Então proibi a entrada a isto tudo.
Neguei-lhes a passagem!
Coloquei o letreiro a dizer: 

- "Estabelecimento Encerrado por motivo de força maior." 

Levei-me até a um dos lugares que sonho conhecer…
Fui até Itália, a Murano.
Fui beber da arte dos Vidreiros que armados de fogo e saber milenar,
dominam o vidro como o escultor lê a pedra em bruto e lhe retira o que estando a mais,
ainda que sendo pedra;
é a sobra da obra irrepetível.
Fui descobrir de onde vinha o vidro que fez as lentes do primeiro telescópio de Galileu!
Queria ver as fornalhas e sentir o calor do vapor de água,
depois de usada para arrefecer e moldar a peça, 
que sendo soprada e tocada a rigor e a olho, está sempre certa, 
sem erro de maior.

Senti os cheiros das Oficinas, do suor a pingar das testas dos Mestres, 
ouvi baixinho o bater precipitado e ansioso do ainda Aprendiz…
Consegui ver o cristal a nascer, um espelho maior que eu a colocar-se bem ao alto!


Depois vim para fora, apanhar ar fresco à beira da Lagoa, 
mirar Veneza ao longe e ali tão perto que quase lhe podia tocar!...
Caminhei e dei comigo na Igreja de Santa Maria e São Donato.
Sentado na coxia, 
procurei pelos ossos do Dragão no altar e contei os mosaicos mais polidos no pavimento.
Perdi o olhar nos tectos dourados, de ínfimos pormenores, 
com figuras pintadas que parecem saber que estão ali para ser adoradas.


Ergui-me subitamente.
Abri os olhos.
Não foi por nada...


Chegou apenas a luz... 
Já posso agora voltar a não pensar.