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02/09/2014

Abjecto

Este eu...
Tenho a Lua, o lamento.
Tenho a vida que não é esta.
As águas que não são minhas.
Sonho a ventania do sonho 
de outra ilusão de gente ao vento.
Sei o mar, sei as marés sem nunca as ter provado.
Sei ao que sabe molhar os pés nas areias do Sinai.
Tenho a pele queimada do Árctico sem ter frio.
Tenho a sombra das rochas sem eras.
Trago o perfume da pele daquela mulher.
O toque dos dedos dela 
nas minhas costas em piano.
Tenho por partitura 
a paixão que não me queima.
A seiva das plantas sangra em mim.
Sou o pranto, a festa.
Sou o encanto, a desilusão,
o fim e a descoberta do inicio.
Sou o rio que deseja a foz.
O pavio da vela 
sem ser vela até ter a chama.
A Igreja e o covil.
Sou o anseio em receio, o medo sem temor.
Eis-me dogma e critica.
Eis-me loucura e senso.
Sou o carinho e o punhal, sou o punho e a ternura.
Eis-me ódio e sem ter desejo de mal.
Vi a palavra feliz no dicionário mas sem lhe sentir as letras.
Eis-me sem nada, pleno de totalidades.
Estou separado mas apenso.
Desnorteado mas sei qual é a Estrela Polar.
Sem lugar mas com o meu sitio de estar.
Sou a cama, a cabeceira.
Tenho a brasa e a neve.
Tenho o choro e a ausência da lágrima.
Tenho tudo e sou pobre.
Sou pobre e vivo como um rei.
Trago o beijo e mais beijos eu quero.
Tenho o mapa mas não me importa o caminho.
Sei-me e não sei se sou.
Sei onde vives mas nego-me à tua morada.
Tenho o ultimo capítulo da estrada.
Sou o principio.
Sei a dor e dor de ser eu vivo.
Sei a morte e morri já tanto por dentro.
Sei para onde olho 
mas não sei o contorno do que vejo.
Sou o mundo e não sou ninguém.
Sou a campa sem nome, sem número mas o meu corpo ali jaz.
Tenho um nome e sou aquele a que chamam de "poeta".

Não sou nada.
Só abjecto.
Tenho ossos, pele, carne, raça, olhos, boca, palavras, voz.

Sou igual a todos vós.